Com nova portaria, depósitos judiciais perdem atratividade
Por: Carolina Unzelte
Fonte: Jota Tributario
A alteração recente na forma de correção monetária dos depósitos judiciais
pode gerar mudanças na estratégia processual de empresas em disputa com o
Fisco, fazendo com que as figuras do seguro garantia e da fiança bancária se
tornem mais atrativas aos contribuintes. A mudança consta na Portaria MF
1.430/2025, publicada no dia 4 pelo Ministério da Fazenda. A norma
regulamentou a correção monetária de depósitos judiciais tributários à luz da
Lei 14.973/2024, que estabelecia apenas o uso de um “índice que reflita a
inflação”. Especialistas, entretanto, apontam insegurança jurídica pela falta de
regulamentação após a legislação e até mesmo uma possível
inconstitucionalidade.
A norma estabelece uma novidade na correção dos depósitos judiciais, isto é,
valores depositados em juízo para garantir o pagamento de dívida discutida em
processo, suspendendo sua exigibilidade enquanto a disputa não é resolvida.
Antes corrigidos pela taxa básica de juros, a Selic, que hoje está em 15% ao ano,
os depósitos passarão a ser atualizados apenas pelo Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo (IPCA). Divulgado nesta quinta-feira (10/7), o IPCA
acumulou alta de 0,25% em junho, e, nos últimos 12 meses, a inflação
acumulada é de 5,35%. Os depósitos feitos antes da portaria entrar em vigor,
em janeiro do ano que vem, continuam sendo atualizados pela Selic, conforme
previa a legislação anterior.
Em certos momentos econômicos excepcionais, o IPCA chegou a ser maior
que a Selic – um exemplo recente foi durante a pandemia, quando, em maio de
2021, o índice inflacionário acumulado em 12 meses era de 8,06%, enquanto a
taxa básica de juros estava em 3,5%. Mas, via de regra, o IPCA é menor que a
Selic, que representa juros reais mais correção inflacionária.
Assim, com a perda da rentabilidade atrelada à Selic, o depósito judicial deixa
de ser um mecanismo financeiramente vantajoso. “Na prática, o contribuinte
está perdendo remuneração. Antes, ao manter o dinheiro no depósito, havia um
ganho real. Agora, ele está apenas protegendo o capital da inflação”, diz
Gabriela Lemos, sócia de tributário no Mattos Filho. “Muita gente olha essa
mudança como um detalhe operacional, mas na verdade ela muda toda a lógica
da gestão do contencioso. O depósito deixava de ser só garantia, ele também
tinha uma função financeira. Agora, com o IPCA, as empresas precisam
repensar como alocar recursos, como negociar e até se vale a pena discutir
judicialmente.”
Alternativas
Nesse cenário, a tendência é que empresas optem por outras modalidades de
garantia. “Para boa parte das empresas, especialmente as que têm passivos
relevantes em discussão, o mais racional passa a ser a substituição do depósito
por seguro garantia ou fiança bancária, que liberam o caixa e são mais eficientes
do ponto de vista financeiro”, explica Luiz Santos, sócio do Lefosse.
O seguro garantia é uma apólice contratada junto a uma seguradora, garantindo
o pagamento de dívida ou obrigação em caso de inadimplemento da parte
contratante, funcionando como alternativa ao depósito em dinheiro em
processos judiciais. Já na fiança bancária, a empresa paga à instituição financeira
uma comissão anual, que costuma variar entre 1% e 3% ao ano sobre o valor
garantido, dependendo do risco, prazo e perfil da empresa.
Nenhuma das opções é barata. Segundo Daniel Lamarca, advogado do BMA
Advogados, para contribuintes menores, o depósito ainda pode fazer sentido.
“Muda muito de caso para caso, mas agora, de fato, o seguro, por exemplo, tem
mais brilho que o depósito”.
Substituição de garantias
A Lei 14.973/2024, que embasa a portaria, prevê a possibilidade de substituição
do depósito judicial por outras garantias. No entanto, a aplicação prática dessa
previsão ainda gera dúvidas, dizem especialistas ouvidos pelo JOTA. “Mesmo
com previsão legal, a substituição não é automática”, alerta Gabriela Lemos. “A
Fazenda pode questionar a suficiência da nova garantia ou tentar impor
requisitos adicionais, como cláusulas específicas no contrato de seguro ou
exigência de instituição financeira cadastrada.”
Para ela, o tema ainda depende de consolidação jurisprudencial e
regulamentação infralegal, o que traz incerteza para empresas que desejam
levantar valores já depositados. "Na prática, há juízos que aceitam a substituição
do depósito judicial de forma quase automática, e outros que pedem
manifestação da Fazenda ou condicionam à concordância da PGFN”, diz. “Isso
pode atrasar o levantamento, especialmente em casos de valor elevado, em que
a resistência costuma ser maior”.
Inconstitucionalidade?
A portaria também reabre o velho debate sobre isonomia entre o contribuinte
e o Fisco. Isso porque, embora o contribuinte receba apenas a variação
inflacionária sobre o valor depositado, a União continua cobrando dívidas
tributárias em atraso com base na Selic, que incorpora tanto correção monetária
quanto juros reais.
Para Luiz Santos, do Lefosse, essa assimetria pode configurar uma violação ao
princípio da igualdade, e trazer judicialização do tema. “A União aplica a Selic
para cobrar, mas, quando perde, quer devolver só com IPCA. Isso rompe o
equilíbrio entre as partes no processo tributário”, afirma. Segundo ele, o novo
modelo pode ser objeto de contestação judicial, especialmente com base na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
Um dos precedentes relevantes é o julgamento da ADI 1.933, em que o STF
validou o repasse dos depósitos judiciais ao Tesouro Nacional. Na ocasião, a
Corte entendeu que o modelo não configurava confisco ou violação de direito
de propriedade, em parte porque havia paridade na correção monetária: tanto
nos casos em que a União vencia quanto naqueles em que perdia, aplicava-se a
Selic. Com a nova portaria, esse pressuposto deixa de existir.
Tributação
A substituição da Selic pelo IPCA também reacende discussões sobre eventual
tributação da correção monetária incidente sobre os valores levantados ao final
do processo. O Supremo já se debruçou sobre isso, como no tema 1243, sobre
a incidência do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ) e da
contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) sobre os valores relativos à
taxa Selic auferidos no levantamento de depósitos judiciais, no qual se decidiu
pela ausência de repercussão geral.
Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o tema 1237, entendeu-se que os
valores de juros, calculados pela Selic ou outros índices, recebidos em face de
repetição de indébito tributário, na devolução de depósitos judiciais ou nos
pagamentos efetuados decorrentes de obrigações contratuais em atraso, por se
caracterizarem como Receita Bruta Operacional, estão na base de cálculo das
contribuições ao PIS/PASEP e Cofins cumulativas e, por integrarem o conceito
amplo de Receita Bruta, na base de cálculo das contribuições ao PIS/PASEP e
Cofins não cumulativas. Além disso, no tema 504, o STJ decidiu que os juros
incidentes na devolução dos depósitos judiciais possuem, sim, natureza
remuneratória e devem ser tributados pelo IRPJ e pela CSLL.
No entanto, após todos esses julgados, a Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 7813, protocolada em maio pela Confederação Nacional de Saúde
(CNS), voltou ao tema. Nela, o Supremo deve decidir sobre a
constitucionalidade da tributação sobre os valores devolvidos ao contribuinte
por depósitos judiciais, considerando a natureza da Selic. E, agora com a nova
correção pelo IPCA, a discussão pode mudar. “Se antes a Selic gerava uma
discussão sobre eventual incidência de IR e CSLL, agora, com o IPCA, o
contribuinte pode argumentar que não houve acréscimo patrimonial, só
recomposição inflacionária”, afirma Gabriela Lemos, do Mattos Filho.
Para ela, esse entendimento se aproxima da tese firmada pelo STF no tema 962.
A diferença é que, no caso dos depósitos judiciais, não se trata exatamente de
devolução de tributos pagos a mais, mas de valores oferecidos como garantia
durante o contencioso. Ainda assim, ela avalia que há margem para que o
contribuinte se apoie na mesma ideia. “A Receita pode tentar tributar, alegando
que qualquer correção representa rendimento, mas a lógica aqui se alinha mais
com a tese do indébito”.
Avanços
O texto da portaria também define que, nos casos de conversão do depósito
em renda da União (isto é, quando a empresa perde a ação e os valores são
transferidos para o Tesouro), a correção permanece irrelevante para fins de
complementação do valor. Isso porque, nesses casos, o depósito é considerado
como pagamento desde a data em que foi realizado, evitando discussões sobre
eventual diferença entre os índices. Para Gabriela Lemos, esse ponto da
regulamentação é positivo. “Havia um receio de que o contribuinte tivesse que
complementar o depósito se a correção fosse inferior à dívida ao final da ação”,
diz.
Daniel Lamarca, do BMA Advogados, também vê com bons olhos o artigo 5º
da portaria. O texto estabelece um novo processo para o Documento para
Depósito Judicial ou Extrajudicial, que agora poderá ser obtido
eletronicamente, em contraste com a regra anterior, que previa que o processo
fosse feito presencialmente em agências bancárias. “Há essa inovação na
emissão, que pode trazer desburocratização”, diz. “Não sabemos como vai ser
na prática ainda, mas é um bom sinal”.